Gilberto Velazco Serrano, de 32 anos, conta por
que, em 2006, desertou de uma missão de seu país na Bolívia - na qual os
médicos eram vigiados por paramilitares. Do Site da Revista Veja.
Aretha Yarak
O cubano Gilberto Velazco Serrano, de 32 anos, é médico. Na ilha
dos irmãos Castro ele aprendeu seu ofício em meio a livros desatualizados e à
falta crônica de medicamentos e de equipamentos. Os sonhos de ajudar
os desamparados bateu de frente, ainda durante sua formação universitária,
com a dura realidade de seu país: falta de infraestrutura, doutrinação
política e arbitrariedade por parte do governo. "É triste, mas eu diria
que o que se pratica em Cuba é uma medicina quase de curandeirismo”, diz
Velazco.
Ao ser enviado à Bolívia em 2006, para o que seria uma ação humanitária,
o médico se viu em meio a uma manobra política, que visava pregar a
ideologia comunista. “A brigada tinha cerca de 10 paramilitares, que estavam
ali para nos dizer o que fazer”. Velazco não suportou a servidão forçada e
fugiu. Sua primeira parada foi pedir abrigo político no Brasil, que permitiu
sua estada apenas de maneira provisória. Hoje, ele mora com a família em Miami,
nos Estados Unidos, onde tem asilo político e estuda para revalidar seu
diploma. De lá, ele concedeu a seguinte entrevista ao site de VEJA:
Como
os médicos são selecionados para as missões?
Eles são
obrigados a participar. Em Cuba, se é obrigado a tudo, o governo diz até o que
você deve comer e o que estudar. As brigadas médicas são apenas uma extensão
disso. Se eles precisam de 100 médicos para uma missão, você precisa estar
disponível. Normalmente, eles faziam uma filtragem ideológica, selecionavam
pessoas alinhadas ao regime. Mas com tantas colaborações internacionais,
acredito que essa filtragem esteja menos rígida ou tenha até acabado.
Como
foi sua missão?
Fomos
enviados 140 médicos para a Bolívia em 2006. Disseram que íamos ficar no país
por três meses para ajudar a população após uma enchente. Quando cheguei lá,
fiquei sabendo que não chovia há meses. Era tudo mentira. Os três meses
iniciais viraram dois anos. O pior de tudo é que o grupo de 140 pessoas não era
formado apenas por médicos - havia pelo menos 10 paramilitares. A chefe da
brigada, por exemplo, não era médica. Os paramilitares estavam infiltrados para
impedir que a gente fugisse.
Paramilitares?
Vi armas
dentro das casas onde eles moravam. Eles andavam com dinheiro e viviam em
mansões, enquanto nós éramos obrigados a morar nos hospitais com os
pacientes internados. Quando chegamos a Havana para embarcar para a Bolívia,
assinamos uma lista para registro. Eram 14 listas com 10 nomes cada. Em uma
delas, nenhum dos médicos pode assinar. Essa era a lista que tinha os nomes dos
paramilitares.
Como
era o trabalho dos paramilitares?
Não me
esqueço do que a chefe da brigada disse: “Vocês são guerrilheiros, não médicos.
Não viemos à Bolívia tratar doenças parasitárias, vocês são guerrilheiros que
vieram ganhar a luta que Che Guevara não pode terminar”. Eles nos diziam o que
fazer, como nos comportar e eram os responsáveis por evitar deserções e impedir
que fugíssemos. Na Bolívia, ela nos disse que deveríamos estudar a catarata.
Estávamos lá, a priori, para a atenção básica – não para operações como
catarata. Mas tratar a catarata, uma cirurgia muito simples, tinha um efeito
psicológico no paciente e também na família. Todos ficariam agradecidos à
brigada cubana.
Você foi
obrigado a fazer algo que não quisesse?
Certa
vez, eu fui para Santa Cruz para uma reunião, lá me disseram que eu
teria de ficar no telefone, para atender informações dos médicos e
fazer estatísticas. O objetivo era cadastrar o número de atendimentos
feitos naquele dia. Alguns médicos ligavam para passar informações, outros
não. Eu precisava falar com todos, do contrário os líderes saíam à
caça daquele com quem eu não havia conversado. Quando terminei o relatório, 603
pacientes tinham sido atendidos. Na teoria, estávamos em 140 médicos na
Bolívia, mas foi divulgado oficialmente que o grupo seria de 680. Então
como poderiam ter sido feitas apenas 603 consultas? Acabei tendo que alterar os
dados, já que o estabelecido era um mínimo de 72 atendimentos por médico
ao dia. Os dados foram falsificados.
Como
é a formação de um médico em Cuba?
Muito
ruim. É uma graduação extremamente ideologizada, as aulas são teóricas, os
livros são velhos e desatualizados. Alguns tinham até páginas perdidas.
Aprendi sobre as doenças na literatura médica, porque não tinha reativo de
glicemia para fazer um exame, por exemplo. Não dava para fazer hemograma. A
máquina de raio-X só podia ser usada em casos extremos. Os hospitais
tinham barata, ratos e, às vezes, faltava até água. Vi diversos pacientes que
só foram medicados porque os parentes mandavam remédios dos Estados Unidos. Aspirina,
por exemplo, era artigo raro. É triste, mas eu diria que é uma medicina quase
de curandeiro. Você fala para o paciente que ele deveria tomar tal remédio. Mas
não tem. Aí você acaba tendo que indicar um chá, um suco.
Como
era feita essa "graduação extremamente ideologizada" que o senhor
menciona?
Tínhamos
uma disciplina chamada preparação militar. Ficávamos duas semanas por ano fora
da universidade para atender a essa demanda. Segundo o governo cubano, o
imperialismo iria atacar a ilha e tínhamos que nos defender. Assim, estudávamos
tudo sobre bombas químicas, aprendíamos a atirar com rifle, a fazer
maquiagem de guerra e a nos arrastar no chão. Mas isso não é algo exclusivo na
faculdade de medicina, são ensinamentos dados até as crianças.
Como
é o sistema de saúde de Cuba?
O país
está vivendo uma epidemia de cólera. Nas últimas décadas não havia registro
dessa doença. Agora, até a capital Havana está em crise. A cólera é uma
doença típica da pobreza extrema, ela não é facilmente transmissível. Isso acontece
porque o sistema público de saúde está deteriorado. Quase não existem mais
médicos em Cuba, em função das missões.
Por
que você resolveu fugir da missão na Bolívia?
Nasci em
Cuba, estudei em Cuba, passei minha vida na ilha. Minha realidade era: ao me
formar médico eu teria um salário de 25 dólares, sem permissão para sair do
país, tendo que fazer o que o governo me obrigasse a fazer. Em Cuba,
o paramédico é uma propriedade do governo. A Bolívia era um país um pouco
mais livre, mas, supostamente, eu tinha sido enviado para trabalhar por apenas
três meses. Lá, me avisaram que eu teria de ficar por dois anos. Eu não tinha
opção. Eram pagos 5.000 dólares por médico, mas eu recebia apenas 100 dólares:
80 em alimentos que eles me davam e os 20 em dinheiro. A verdade é que eu
nunca fui pago corretamente, já que médico cubano não pode ter dinheiro em
mãos, se não compra a fuga. Todas essas condições eram insustentáveis.
Você
pediu asilo no Brasil?
Pedi que
o Brasil me ajudasse no refúgio. Aleguei que faria o Revalida e iria para o
Nordeste trabalhar em regiões pobres, mas a Polícia Federal disse que não
poderia regularizar minha situação. Consegui um refúgio temporário, válido de 1
de novembro de 2006 a 4 de fevereiro de 2007. Nesse meio tempo, fui à embaixada
dos Estados Unidos e fui aprovado.
Após
a sua deserção, sua família sofreu algum tipo de punição?
Eles
foram penalizados e tiveram de ficar três anos sem poder sair de Cuba. Meus
pais nunca receberam um centavo do governo cubano enquanto estive na Bolívia,
mas sofreram represálias depois que eu decidi fugir.
Quando
você foi enviado à Bolívia era um recém-formado. A primeira leva de cubanos no
Brasil é composta por médicos mais experientes...
Pelo o
que vivi, sei que isso é tudo uma montagem de doutrinação. Essas pessoas são
mais velhas porque os jovens como eu não querem a ditadura. Eu saí de Cuba e
não voltei mais. No caso das pessoas mais velhas, talvez eles tenham família,
marido, filhos em Cuba. É mais improvável que optem pela fuga e deixem seus
familiares para trás. Geralmente, são pessoas que vivem aterrorizadas, que só
podem falar com a imprensa quando autorizadas.
Os
médicos cubanos que estão no Brasil deveriam fazer o Revalida?
Sim. Em Cuba,
os médicos têm de passar por uma revalidação para praticar a medicina dentro do
país. Sou favorável que os médicos estrangeiros trabalhem no Brasil, mas eles
precisam se adequar à legislação local. Além do mais, a formação médica em Cuba
está muito crítica. Eu passei o fim da minha graduação dentro de um programa
especial de emergência. A ideia era que eles reduzissem em um ano minha
formação, para que eu pudesse ser enviado à Bolívia. O governo cubano está
fazendo isso: acelerando a graduação para poder enviar os médicos em missões ao
exterior.