OS DONOS DO PODER
NELSON
PAES LEME
O
GLOBO - 28/04
Saqueiam o Erário de forma torpe, solerte e desavergonhada. E
nenhuma força do restante da sociedade civil lhes contrapõe qualquer
resistência.
Raymundo Faoro, em seu
antológico “Os donos do poder”, faz um diagnóstico certeiro e preciso da origem
do patrimonialismo brasileiro: a Casa de Aviz portuguesa no Século XIV. Os reis
de Portugal se consideravam proprietários do país e da nação. Essa cultura
atravessou mares e séculos e se enraizou com toda a força no Brasil e na nossa
concepção de Estado soberano. Hoje já não há a Casa de Aviz. Outros são os
tempos e outros são os donos do poder. A Petrobras que o diga.
O Estado brasileiro sempre
foi um paquiderme a serviço desses “donos” eventuais do poder. Inicialmente
foram os próprios reis portugueses, depois os imperadores, depois os militares
positivistas da República Velha. Depois o ditador Vargas em duas etapas, sendo
que na última já dividiu parte do poder (inclusive a Petrobras) com um
peleguismo ainda incipiente e amadorista. Nada parecido com o atual, altamente
sofisticado e requintado. São pelegos muitas vezes com PhD e que andam
acompanhados, em jatinhos executivos, de poderosos empreiteiros e subempreiteiros
de gigantescas obras públicas. Alguns com mandato popular nas câmaras,
assembleias legislativas e até no Congresso Nacional. Pelegos que tomam vinhos
caríssimos de safras de colecionador, mas não arredam pé de um sindicalismo em
decadência porque alinhado a um socialismo que já não existe. Um socialismo que
foi atropelado pela revolução científico-tecnológica e pela deterioração da
vida planetária, de todas as espécies viventes a exigir rever as prioridades no
campo do social e da própria economia de mercado.
Com a ditadura militar que
tomou conta do Brasil de 1964 a 1984, esses líderes sindicais de outrora se
organizaram com mestres acadêmicos, também sindicalistas públicos em estado de
pureza ideológica, egressos das universidades estatais, na resistência
democrática, e fundaram um partido político, com o placet dos militares,
especialmente do general Golbery do Couto e Silva, pretenso ideólogo do regime
militar. Estratificou-se assim uma tecnoburocracia de oposição à
tecnoburocracia militar no governo e que passou a dominar o aparelho partidário
do Partido dos Trabalhadores, desfraldando a bandeira do vestalismo na política
e do igualitarismo no social.
Esse partido, aparentemente
ingênuo e idealista, forjado ainda nos ideais distributivistas da pré-Guerra
Fria e do trotskismo revolucionário do princípio do século passado tinha, no
entanto, um projeto histórico de poder idêntico ao dos reis de Portugal, dos
imperadores, dos militares positivistas, dos ditadores e dos militares
golpistas: tomar conta do aparelho do Estado e tornar-se dono da República e de
sua economia altamente estatizada e burocratizada. O próprio Faoro já
vaticinara: “Sobre as classes sociais que se digladiam, debaixo do jogo
político, vela uma camada político-social, o conhecido e tenaz estamento
burocrático nas suas expansões e nos seus longos dedos.” Esses longos dedos
hoje pertencem a esses novos donos do país.
Ascenderam ao poder.
Locupletaram-se nas companhias e bancos estatais, reinventando o
“presidencialismo de coalizão” com o pior do fisiologismo herdado da ditadura
militar. E aí estão. Não há força que os remova. Saqueiam o Erário de forma
torpe, solerte e desavergonhada. E nenhuma força do restante da sociedade civil
lhes contrapõe qualquer resistência. Até quando irão corroendo o tecido
republicano, ninguém sabe. Seu combustível é a ignorância, a indigência
cultural e a miséria humana.
As próximas eleições gerais
que se avizinham serão decisivas para o futuro desses novos “donos do poder” e
sua percepção atrasada e ultrapassada de Estado. Mas, seja qual for seu
resultado, esta República se esgotou. É ingente um novo pacto que inaugure a
próxima, em que o poder seja realmente partilhado com o soberano: o restante do
povo brasileiro que a tudo assiste perplexo e desorientado. Uma imensa tarefa
de reconstrução do Estado brasileiro é o que se espera, mas ainda não se
percebe no discurso dos candidatos.
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